"No que me diz respeito, no principio há sempre um elemento exterior, concreto. Não um conceito, uma tese. E há também um pouco de confusão no principio. Provavelmente, o filme nasce justamente desta confusão. A dificuldade consiste em pôr em ordem. Estou convencido que depende não só de atitude, mas também de um hábito de fantasia.

Um realizador não faz mais do que procurar nos seus filmes, que são documentos, não de um pensamento concluído, antes sim de um pensamento que se formula.

Nós somos as nossas personagens, na medida em que acreditamos no filme em que estamos fazendo. Mas entre nós e eles há sempre o filme, há este fato concreto, preciso, lúcido, este ato de vontade e de força que nos qualifica inequivocamente que nos desliga da abstração para pôr-nos com os pés bem assentes na terra.

O maior perigo para quem faz cinema consiste na extraordinária possibilidade de mentir que ele oferece.

Sabemos que sobre a imagem revelada existe outra mais fiel à realidade, e sob esta outra ainda, e novamente uma outra sobre esta última. Assim até à verdadeira imagem daquela realidade, absoluta, misteriosa, que ninguém jamais verá. Ou, talvez até à decomposição de uma imagem qualquer, de uma realidade qualquer.

O cinema abstrato teria, portanto, a sua razão de existir.

Eis uma ocupação que nunca me cansa: olhar. Gosto de quase todos os cenários que vejo: paisagens, pessoas, situações. Por um lado é um perigo, mas por outro é uma vantagem, porque permite uma fusão completa entre a vida e trabalho, entre realidade (ou irrealidade) e cinema.

Não se penetra nos fatos com a reportagem.

Eis o limite dos roteiros: dar palavras a acontecimentos que as recusam.

Os livros fazem parte da vida e o cinema nasce daí. Que um acontecimento seja extraído de um romance, de um jornal, de um episódio verdadeiro ou inventado, não muda nada. Uma leitura é um fato. Um fato, quando repensado é uma leitura.

Quem pensa que o roteiro tem um valor literário está enganado. Pode objetivar-se que, se uns não têm, outros poderão tê-lo. Talvez. Mas então são puros e verdadeiros romances autônomos.

Um filme não impresso em película não existe. Os roteiros pressupõem o filme, não tem autonomia, são páginas mortas."

Antonioni

5 comentários:

Vinícius disse...

Rapaz, leigo não opina, apenas admira. Portanto, tenha certeza que sua postagem está sendo admirada.
Aproveitando, queria fazer um pedido. Faz uma postagem sobre o filme romeno 4 meses, 3 semanas e 2 dias. Ainda estou muito intrigado com esse longa (eu ainda acho que a loirinha está grávida).

No mais, belo blog, cara.

Anônimo disse...

rsrsrs

"Eis o limite dos roteiros: dar palavras a acontecimentos que as recusam."

Muito boa a postagem.
Achei bem interessante.

Só não concordei em alguns apectos. Os roteiros não necessariamente são páginas mortas. Acho que se bem escritos nos faz imaginar, viajar e pré-visualizar isso. Não acho qe páginas mortas fazem isso. São mortas em todos os aspectos.

Mas concordo com você onde diz que um filme nasce de uma tremenda confusão. Com filmes bons acontecem assim. E que somos as nossas personagens. É daí que surge os bons atores.

Flws Bernard,
invadindo seu Blog.
rsrsrs
abraço

bernard disse...

Opa, Vinicius, valeu, pode deixar que pra frente eu faço uma postagem sobre esse filme romeno que também mexeu muito comigo, assim que eu o revir, o que pode demorar um pouquinho, mas na certa acontecerá, eu posto.

E, Perov:isso escrito aí são palavras do Antonioni, e não minhas, eu apenas juntei e postei aqui, essa é a visão dele sobre o cinema, o roteiro, etc. e não necessariamente a minha.

Dizer que os roteiros são páginas mortas pode soar radical, mas eu concordo, pois eles devem se prestar a ser uma ferramenta para a criação do filme em si, a película. E quando o roteiro não se presta a apenas cumprir seu papel cinematográfico, quando ganha autonomia, aí o que se ve na tela é literatura, e não cinema. Mas isso, é claro, é uma questão subjetiva.

Saiba que és bem-vindo aqui.
Abraço

Rafael Abreu: disse...

Ótimo. A parte da realidade sob a irrealidade do cinema diz tudo.

Flora disse...

E eu vou aprendendo mais sobre cinema todas as vezes que venho aqui.
Quem sabe você me ajuda com a pesquisa sobre documentário?!
auhauhauahuhaua
Parabéns pelo texto futuro cineasta.