Para elas...

(1)

O que pele e alma, paixão distante
Quilômetros afugentaram a constância dos amantes
A melancólica ausência estampou-se nos semblantes
E o relógio que outrora depois, parece agora clamar antes

Amontoado de tempo destempo
Medidas disformes de tempo
Horas e dias cujo volume varia
À medida que a saudade desvaria

O passado subordinando o presente
A lente trocando de foco
O invólucro da vida quedando-se doente
Pierrot e Colombina mudando de bloco.

(2)

a poesia é intraduzível,
e quando adquire textura:
sangue, osso, carne
que mesmo após apagados, diluídos, desmanchados
tem vasão no charme
aí então é que não se mensura.
O passarinho

Quando o Brasil levantou o Pan-Americano, eu só lamentei uma coisa: - que Bilac não estivesse vivo. Não o Bilac da "Frinéia", do "Nunca morrer assim", das "Virgens mortas", mas sim o Bilac dos tiros de guerra. Infelizmente, não mais existem, nem os tiros, nem o poeta. E é pena. Outrora, cada acontecimento tinha um Homero à mão, ou um Camõs, ou um Dante. Recheado de poesia, entupido de rimas, o fato adquiria uma dimensão nova e emocionante. Ora, faltou, justamente, à vitória gaúcha, o seu poeta. Os correspondentes brasileiros, que estavam no México, deviam mandar, de lá, telegramas rimados, ungidos de histerismo cívico. Mas como estamos em crise de Bilacs, o fabuloso triunfo só inspirou mesmo uma pífia correspondência, que nos enche de humilhação patriótica e vergonha profissional. Cada cronista da delegação, em vez de babar materialmente de gozo, mandou dizer ao seu jornal o seguinte: - "que os argentinos jogaram mais, que os argentinos mereceram vencer e que os brasileiros estavam apáticos". Vejam vocês em que dá a mania de justiça e da objetividade! Um cronista apaixonado havia de retocar o fato, transfigurá-lo, dramatizá-lo. Daria à estúpida e chata realidade um sopro de fantasia. Falaria com os arreganhos de um orador canastrão. Em vez disso, os rapazes cingiram-se a uma veracidade pura e abjeta. Ora, o jornalista que tem o culto do fato é profissionalmente um fracassado. Sim, amigos, o fato em si mesmo vale pouco ou nada. O que lhe dá autoridade é o acréscimo da imaginação. Por outras palavras: - os cronistas patrícios teriam que dizer, do México, que fomos os maiores, que teríamos papado o próprio escrete húngaro, e que houve, no mínimo, umas 35 bolas na trave. Dirá alguém que seria uma inverdade. De acordo. Mas o fato ganharia em poesia, em ímpeto lírico, em violência dramática. E, além disso, ai do repórter no dia em que fosse um reles e subserviente reprodutor do fato. A arte jornalística consiste em pentear ou desgrenhar o acontecimento, e , de qualquer forma, negar a sua imagem autêntica e alvar. Modelo de eficiência profissional foi aquele repórter que viu um incêndio. Entre parênteses: - já contei o episódio, mas vou repetí-lo, a título ilustrativo. O jornalista espia o fogo e conclui que se tratava, na verdade, de um incêndio vagabundo, uma vergonha de incêndio. Qualquer mãe de família o apagaria com um humilhante regador de jardim. Volta o repórter para a redação e, lá, escreve uma página de jornal sobre o fracassado sinistro. E mais: - põe um canário inventado no meio das labaredas, um canário que morre cantando. No dia seguinte, a edição esgotou-se. A cidade inteira, de ponta a ponta, chorou a irreparável perda do bicho. Vejam vocês a lição de vida e de jornalismo: - com duas mentiras, o repórter alcançara um admirável resultado poético e dramático. O que faltou aos nossos correspondentes do México foi, justamente, o passarinho. Fizemos uma África miserável, uma ilíada tenebrosa, papamos o Chile, o Peru, o México, a Costa Rica e quase a Argentina. E nenhum dos confrades, adidos à delegação, lembrou-se de recriar o canário, de assassiná-lo outra vez. Sem passarinho, não há jornalismo possível.

Nelson Rodrigues em "O Berro Impresso das Manchetes"

Wong Kar Wai's Blueberry Nights

O novo filme do cultuado cineasta Wong Kar Wai, My Blueberry nights (que no Brasil os tradutores se encarregaram - como quase sempre - de deturpar, chamando-o de "Um beijo roubado") foi recebido pela crítica com ressalvas e, agora, julgo-o segundo meu crivo.

A primeira incursão do chinês no cinema americano rendeu um filme de qualidade duvidosa. Vamos, então, por partes: o filme tem a presença de ninguém menos que Rachel Weisz, Natalie Portman, Jude Law e David Strathairn, além da estréia da cantora Norah Jones na telona (no papel principal) e a pontinha de Chan Marshal (Cat Power - que aparece na virtuosa trilha sonora do filme). Curiosamente, a sobra de bons atores atrapalha o desenvolvimento do roteiro, a força dos personagens de Natalie Portman, Rachel Weisz e David Strathairn desvia o foco da história principal ao invés de incrementá-la.

A falta de experiência de Norah Jones faz-se sentir, numa interpretação mediana, seguida de perto por Jude Law, que também decepciona. A atuação de Natalie Portman é, por vezes, exagerada, assim como a de Rachel Weisz. Desse time aí em cima, o único que merece sinceros aplausos, em minha opinião, é David Strathairn, que manda muito bem como um policial beberrão e de coração partido.

O roteiro assinado por WKW e Lawrence Block não tem aquela alma de atrabalhos anteriores do diretor, como Amor à flor da pele (In The Mood For Love) ou 2046, ou até mesmo Amores expressos (Chungking Express). Os diálogos são sofríveis, o que se explica pela falta de conforto do diretor chinês com a língua inglesa. E além disso, o roteiro soa um tanto quanto repetitivo, se comparado aos filmes anteriores do próprio.

Apesar das ressalvas, o filme é primoroso na estética: a fotografia, que, dessa vez, não é assinada por Christopher Doyle, e sim Darius Khondji (Delicatessen), é uma preciosidade. A direção de WKW não decepciona, os efeitos em slow motion são belos ( apesar de o cinestas, às vezes, abusar desse recurso, o que não chega a comprometê-lo), a composição de planos do china é sensacional.

Resumindo, o filme tem o ritmo, a beleza e o toque da direção WKW, mas peca no conteúdo.