Quando o carnaval chegar

Quem me vê sempre parado, distante
garante que eu não sei sambar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Eu tô só vendo, sabendo, sentindo, escutando
e não posso falar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Eu vejo as pernas de louça da moça que passa e não posso pegar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Há quanto tempo desejo seu beijo molhado de maracujá
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
E quem me ofende, humilhando, pisando,
pensando que eu vou aturar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
E quem me vê apanhando da vida duvida que eu vá revidar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Eu vejo a barra do dia surgindo, pedindo pra gente cantar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Eu tenho tanta alegria, adiada, abafada, quem dera gritar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar.

Francisco Buarque de Hollanda
"Qual é a essência do trabalho de um diretor? Poderíamos defini-la como 'esculpir o tempo'. Assim como o escultor toma um bloco de mármore e, guiado pela visão interior de sua futura obra, elimina tudo que não faz parte dela — do mesmo modo o cineasta, a partir de um 'bloco de tempo' constituído por uma enorme e sólida quantidade de fatos vivos, corta e rejeita tudo aquilo que não necessita, deixando apenas o que deverá ser um elemento do futuro filme, o que mostrará ser um componente essencial da imagem cinematográfica. "
Andrei Tarkovski
Todo instante que passávamos juntos
Era uma celebração, como a Epifania,
No mundo inteiro, nós dois sozinhos.
Eras mais audaciosa, mais livre que a asa de um pássaro,
Estonteante como uma vertigem, corrias escada abaixo
Dois degraus por vez, e me conduzias
Por entre lilases húmidos, até teu domínio,
No outro lado, para além do espelho.
Quando chegava a noite eu conseguia a graça,
Os portões do altar se escancaravam
E nossa nudez brilhava na escuridão
Que caía vagarosa. E ao despertar
Eu dizia, "Abençoada sejas!"
E sabia que minha benção era impertinente:
Dormias, os lilases estendiam-se da mesa
Para tocar tuas pálpebras com um universo de azul,
E tu recebias o toque sobre as pálpebras,
E elas permaneciam imóveis, e tua mão ainda estava quente.
Havia rios vibrantes dentro do cristal,
Montanhas assomavam por entre a neblina, mares espumavam,
E tu seguravas uma esfera de cristal nas mãos,
Sentada num trono ainda adormecida,
E - Deus do céu! - tu me pertencias.
Acordavas e transfiguravas
As palavras que as pessoas pronunciam todos os dias,
E a fala enchia-se até transbordar
De poder ressonante, e a palavra "tu"
Descobria seu novo significado: "rei".
Objectos comuns transfiguravam-se imediatamente,
Tudo - o jarro, a bacia - quando,
Entre nós como uma sentinela,
Era colocada a água, laminar e firme.
Éramos conduzidos, sem saber para onde;
Como miragens, diante de nós recuavam
Cidades construídas por milagre,
Havia hortelã silvestre sob nossos pés,
Pássaros faziam a mesma rota que nós,
E no rio peixes nadavam correnteza acima,
E o céu se desenrolava diante dos nossos olhos.
Enquanto isso o destino seguia nossos passos
Como um louco de navalha na mão.
Arseni Tarkovski