projeto Logos - part. III


"Até que tantos livres o amedrontando,
renegou dar a viver no claro e aberto,
onde vãos de abrir, ele foi amurando
opacos de fechar, onde vidro, concreto."

João Cabral


A palavra, de rio, tornou-se poço.
Estanque, domada, em situação dicionária.
Para em seguida perder toda sua dimensão aquosa,
molhdada e molhante, seu devir-linguagem.
E engessada, necrológica, figurar em contratos, jornais
escrituras, testamentos, certidões
A palavra petrificou-se à sua própria revelia.
Tornou-se ouro em tempos de capital.
Ouro que é, em sua estática dimensão.
Ouro de tolo. Ouro de tolos. Ouro de todos.

Tentando recomeçar


"Recomeçar, trabalhar, mil vezes tentar ser um homem. Trabalhar com Arthuro, esquecer Ana, apagar Luciana. Não lembrar-se senão do trabalho, das cinquentas obrigações diárias, lembrar-se somente das multi chateações diárias do trabalho, lembrar-se de uma engrenagem e mais outra, e mais outra, e mais outra, duma engrenagem e depois um eixo que devem ser entregues dentro do prazo estabelecido. Mil vezes recomeçar, recomeçar de novo, recomeçar sempre. Esquecer Ana, apagar Luciana, lembrar-se das cinquentas obrigações diárias do trabalho. Recomeçar, recomeçar. Aceitar, aceitar.
Quero ir embora, Luciana. Não quero mais ver você, nem meu filho, nem Arthuro, nem ninguém, quero sumir, acho que foi tudo um erro desde o início, bobagem minha, se você me perguntar por que, nem eu mesmo sei, nem eu, nem eu, nem eu!
Sei que devo deixar tudo e recomeçar outra vez, recomeçar bem ou acabar de uma vez por todas."


São Paulo S/A

Viúva negra


Suponho que nesse momento você deve, sem força pra articular palavras ou fazer qualquer movimento, estar se perguntando o que há de errado: o suor frio, a dor corrosiva no estômago, a imobilidade - você com certeza já percebeu que isso não é mero efeito do álcool. Se te conforta, eu explico: isso são efeitos do veneno que eu pus na sua bebida. Isso mesmo, veneno. Tá vendo esse cigarro na minha mão? Você tem um cigarro de vida, quando ele acabar (nesse momento ela acende o cigarro e dá uma tragada bem devagar, soltando a fumaça com a mesma cadência), você também acaba. Então, se estiver interessado em saber o motivo da sua morte, abre bem os olhos e aguça os ouvidos, bonitão.
A verdade é que eu nunca tive sorte com os homens, meu pai mesmo eu nem cheguei a conhecer. Quando eu nasci ele já era um fantasma nas vidas minha e da minha mãe. Depois de um tempo minha mãe se casou, e me limitarei a dizer que meu padrasto não era nenhum doce com nós duas, principalmente comigo. Mas o tempo passou e cada vez que eu acreditava haver superado esse trauma, uma nova decepção me remetia às horríveis experiências da infância.
Eu tentei, bem que tentei, mas ao completar 16 anos eu já havia desistido. Desde o meu nascimento eu só havia conhecido homens cuja masculinidade me era extremamente abjeta.
A partir daí foi um pulo até eu tomar verdadeira ojeriza pela humanidade, principalmente pelos homens e pelo ato sexual. Os homens sempre pareceram pra mim seres passíveis única e exclusivamente de pena, e eu já havia aprendido a não mais ter misericórdia. A verdade é que eu nunca fui religiosa como a minha mãe e minha tia: a vida me ensinou foi a revidar e não a oferecer a outra face, papinho besta esse.
O último com quem eu me encontrei teve força o bastante pra articular uma frase antes de morrer: "sua puta niilista". Achei interessante, quase cômico, ele me chamar de niilista.
Mas foram as circunstâncias, que fique bem claro, que me levaram a tal ponto em que eu tive que escolher entre matar ou morrer, e se o veneno ainda não aboliu a totalidade da sua sanidade, você certamente já intuiu a minha escolha.
Ela então apaga o cigarro.