"No que me diz respeito, no principio há sempre um elemento exterior, concreto. Não um conceito, uma tese. E há também um pouco de confusão no principio. Provavelmente, o filme nasce justamente desta confusão. A dificuldade consiste em pôr em ordem. Estou convencido que depende não só de atitude, mas também de um hábito de fantasia.

Um realizador não faz mais do que procurar nos seus filmes, que são documentos, não de um pensamento concluído, antes sim de um pensamento que se formula.

Nós somos as nossas personagens, na medida em que acreditamos no filme em que estamos fazendo. Mas entre nós e eles há sempre o filme, há este fato concreto, preciso, lúcido, este ato de vontade e de força que nos qualifica inequivocamente que nos desliga da abstração para pôr-nos com os pés bem assentes na terra.

O maior perigo para quem faz cinema consiste na extraordinária possibilidade de mentir que ele oferece.

Sabemos que sobre a imagem revelada existe outra mais fiel à realidade, e sob esta outra ainda, e novamente uma outra sobre esta última. Assim até à verdadeira imagem daquela realidade, absoluta, misteriosa, que ninguém jamais verá. Ou, talvez até à decomposição de uma imagem qualquer, de uma realidade qualquer.

O cinema abstrato teria, portanto, a sua razão de existir.

Eis uma ocupação que nunca me cansa: olhar. Gosto de quase todos os cenários que vejo: paisagens, pessoas, situações. Por um lado é um perigo, mas por outro é uma vantagem, porque permite uma fusão completa entre a vida e trabalho, entre realidade (ou irrealidade) e cinema.

Não se penetra nos fatos com a reportagem.

Eis o limite dos roteiros: dar palavras a acontecimentos que as recusam.

Os livros fazem parte da vida e o cinema nasce daí. Que um acontecimento seja extraído de um romance, de um jornal, de um episódio verdadeiro ou inventado, não muda nada. Uma leitura é um fato. Um fato, quando repensado é uma leitura.

Quem pensa que o roteiro tem um valor literário está enganado. Pode objetivar-se que, se uns não têm, outros poderão tê-lo. Talvez. Mas então são puros e verdadeiros romances autônomos.

Um filme não impresso em película não existe. Os roteiros pressupõem o filme, não tem autonomia, são páginas mortas."

Antonioni
*Há exatamente uma semana, terminei de reler o que pra mim é o melhor livro de um de meus escritores favoritos, Dostoievski. Minha primeira experiência com "Os Irmãos Karamázov" foi numa época em que engatinhava na literatura, acredito mesmo que tenha sido o primeiro grande (em ambos so sentidos) livro lido - excentuando-se aquelas sofríveis edições mal traduzidas e demasiado reduzidas que nossos "mestres" nos impõem quando no ensino fundamental. Desde que o terminei pela primeira vez, me acompanhava freqüentemente um desejo de relê-lo, por ter ciência de que a pouca maturidade que possuía na época me privara de belos momentos de refexão e deleite. Resolvi, então, driblar a preguiça que de vez em quando nos acomete quando nos vemos prontos a começar um livro de 740 páginas, e o reli. A experiência foi transformadora, minha visão de mundo que, aos poucos, vinha sendo poluída por pensamentos contraditórios, sofreu enfim o golpe derradeiro, dando lugar a uma outra postura ideológica. Livraço!

*Ontem reassisti a Miami Vice, do Mann, e nada tenho a deixar aqui além de minha estupefação diante do domínio do homem diante do que faz. Sensacional!

*Está rolando o 61º festival de Cannes, que nesse ano foi aberto com o aguardado filme Blindness (em português: Cegueira), de Fernando Meirelles, adaptado do fantástico - em todos os sentidos que o termo comporta - romance do único escritor em língua portuguesa contemplado com o prêmio Nobel, José Saramago. Apesar da recepção fria que o filme teve, continuo bem ansioso para assistí-lo. Além de Meirelles, outro representante brasileiro, Walter Salles ,também participa da mostra competitiva, com seu Linha de Passe. Além dos brasileiros ainda há filmes muito esperados como os de Clint Eastwood, Wim wenders, Steven Soderbergh, os já duas vezes premiados com a palma de ouro Jean-Pierre e Luc Dardenne, James Gray, Philip Garrel e a estréia na direção do já conhecido roteirista Charlie Kaufman. Parece que o festival desse ano prima por descobertas, apresentando grande número de diretores e obras desconhecidas. O negócio agora é esperar um pouco pra ver quem sai vencedor, e esperar muito para vê-los por aqui.

*À dor de cotovelo de não estar em Cannes, desfrutando da maior festa cinematográfica da atualidade, adiciona-se a tristeza de não ir ao Festival de Jazz e Blues de Rio das Ostras, que esse ano tem ninguém mais, ninguém menos que John Mayal and The Bluesbreaker, entre outras grandes atrações. O feriado virá recheado de dvds e mp3 para tentar suprir essa carência dos grandes eventos ao vivo.

"O estúdio queria que fosse um barco em miniatura arrastado por cima de um morrinho de jardim, mas eu disse que iríamos arrastar um navio de verdade por cima de uma montanha de verdade, e que seria um evento grandioso numa ópera majestosa. Queria que os espectadores pudessem crer no que vissem.

Mais que em qualquer outro período histórico, nosso senso de realidade está gravemente ameaçado. É a Internet, o Photoshop, são os efeitos digitais no cinema, os videogames — ferramentas que surgiram com impacto imediato. É como nas batalhas militares. Durante séculos, as batalhas foram iguais: o cavaleiro medieval em combate, com uma espada. De repente, ele se deparou com armas de fogo, e da noite para o dia tudo mudou. Estamos passando agora por um momento de igual magnitude.

Sou um sujeito profissional. Outros não fariam o que faço, mas tento ser um bom soldado do cinema. "

Herzog

Pequena ode metalingüística

Toda página é um depósito
(de palavras-tonelada
ou estrofes-miligrama)
volume incalculável

Nem todo verbo, chama
Mas todo sangue, inflamável